quarta-feira, 4 de julho de 2012

Quatrocentos anos ameaçados

Por: J.R.Martins - jrmartins@uol.com.br

De algum tempo para cá, com a aproximação da data comemorativa dos quatrocentos anos da cidade, vem ganhando espaço uma campanha despropositada que tenta desqualificar a sua fundação pelos franceses.  Pretendem essas pessoas modificar a história e atribuir aos portugueses, mais precisamente a Jerônimo de Albuquerque, a autoria do feito.

Pelo que pude apurar, essa inquietação tem origem a partir do livro “A fundação francesa de São Luís e seus mitos”, da professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix.

Embora eu tenha consciência de estar muito distante de ser classificado como historiador, tenho que reconhecer minha incontrolável curiosidade em torno das coisas ligadas ao Maranhão, com destaque para aquelas que dizem respeito à capital.

Possuo uma considerável quantidade de livros que tratam do assunto, aos quais recorro sempre que tenho dúvidas e necessito esclarecê-las.

O mais importante documento de que se tem notícia sobre a fundação de São Luís foi escrito pelo padre  Claude D’Abeville, um dos quatro capuchinhos que acompanharam La Ravardiêre e sua esquadra ao Maranhão. Em sua “História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças” narra minuciosa e circunstanciadamente todos os momentos importantes que ali aconteceram. Desde a chegada; escolha do local adequado para o assentamento; estabelecimento do forte; abertura de uma grande praça em frente (atual Avenida Pedro II); construção de casas, armazém e de igreja, convento e seminário dos moços franceses e índios, para o aprendizado do francês e língua nativa; a pomposa cerimônia que caracterizou a fundação da cidade (erguimento da cruz, celebração de missa solene, procissão); até a conquista amigável dos Tupinambás, primeiros habitantes da Ilha.

Na verdade, foi muito além. O cronista pesquisou de forma esplêndida e única nossos peixes, animais, pássaros, árvores frutíferas e até insetos, deixando-nos, desse estudo, um legado de valor inestimável. Também deixou registrada a tradução de um grande número de palavras indígenas aprendidas durante sua boa convivência com eles.   

Se a verdade da fundação da cidade foi ignorada por muitos anos, e somente revelada publicamente por José Ribeiro do Amaral, em seu livro “Fundação do Maranhão” (1912), como estão alegando, deve-se talvez à dificuldade de acesso à obra de Abeville, naquela época.  Também é possível que, antes dele, Ribeiro do Amaral,  tenha havido certa acomodação por parte dos historiadores e pesquisadores no que tange à modificação da história como era aceita e adotada. O certo é que quase tudo sobre o Maranhão do início do século XVII deriva dos depoimentos do citado padre capuchinho. Talvez, por isso mesmo, não seja fácil encontrar algum cronista que questione o mérito dos gauleses de fundadores de nossa capital. Faltariam elementos convincentes para tanto.

Entretanto, os que se atrevem a contestar a consagrada autoria do assentamento francês, utilizam como uma das principais justificativas a ausência de construções sólidas e duradoras deixadas por eles. Ora! Com tão pouco tempo que puderam ali permanecer, não tinham como executar esse tipo de obra. Tal fato não pode e nem deve ser considerado prova suficiente para lhes negar a paternidade da fundação. Tais construções demandariam muito tempo e dinheiro, coisas que lhes foram escassos. Mesmo depois de reconquistada a Ilha, demorou muito até que os lusitanos erguessem suas primeiras casas duradouras. Podemos constatar que, ainda hoje, com os recursos técnicos e financeiros disponíveis, a recuperação de apenas um dos muitos prédios históricos em ruínas consome mais tempo que o recomendável.

O valioso e incontestável patrimônio material e cultural que herdamos dos colonizadores lusitanos somente surgiu bem recentemente. Coisa de pouco mais de dois séculos. Tivessem eles permanecido na Ilha apenas três anos, com certeza também muito pouco ou nada teriam deixado para a posteridade. 
Os franceses não vieram ao Maranhão com a intenção de permanecerem por tempo limitado. Da leitura das diversas obras que tratam do assunto, pode-se perfeitamente depreender que pretendiam ali se estabelecer definitivamente, fundando a Nova França ou França Equinocial.

E para isso, naturalmente, necessitavam alongar seus domínios até regiões bem além da Ilha. Com essa finalidade, fizeram algumas incursões até mais ao norte do Brasil. Segundo a visão de Jerônimo de Viveiros: “a França Equinocial não criou raízes, durou apenas três anos e quatro meses. Estava ainda em organização quando lhe sobreveio o desastre de Guaxenduba”. Acrescenta ele, em outro trecho de sua obra: “Não era mais o comércio que os franceses disputavam, era também o território da colônia portuguesa”.

Como já sabemos sobejamente, essas terras estavam na posse de Portugal desde o ano de 1500. Da mesma forma, é indiscutível que os lusitanos, por motivos os mais variados, mantiveram a região norte do país abandonada à sua própria sorte por mais de uma centúria. Somente após a chegada ambiciosa dos gauleses em terras maranhenses os portugueses voltaram sua atenção para aquelas paragens. Igualmente, sabemos que, pelo Tratado de Tordesilhas, grande parte de nosso território pertenceria à Espanha, não fosse ocupada pela coroa portuguesa.

Voltando a Jerônimo de Viveiros, conta ele em sua “História do Comércio do Maranhão” (cap.I-pg.1), que tão logo Francisco I tomou conhecimento do Tratado de Tordesilhas, teria jocosamente dito que iria perguntar ao Papa Alexandre VI em que cartório se achava o testamento de Adão, legando o Novo Mundo à Espanha e Portugal e deserdando as demais nações.

Persistindo na leitura dos cronistas que tratam da estada dos franceses em terras tupiniquins, desde Claude D’Abeville, Yves D’Evreux e Diogo de Campos Moreno até autores mais recentes, como Pe. João Filipe Bettendorff, César Augusto Marques, Jerônimo de Viveiros e Mário Meireles, ainda não conseguimos identificar citações que neguem comprovadamente o fato histórico da fundação da cidade aos franceses e, muito menos, sua atribuição ao notável guerreiro Jerônimo de Albuquerque. Este, por sinal, morreu desgostoso, depois que teve transferido para o general Alexandre de Moura o reconhecimento de sua vitória.

Por mais que tentem denegrir sua imagem, é incontestável que o comandante Daniel de La Touche foi, em todas as ocasiões, um nobre cavalheiro que honrou suas atitudes. Do trato diário com os íncolas; das boas relações mantidas com Jerônimo de Albuquerque, após a célebre batalha de Guaxenduba; do envio gentil de seu cirurgião com medicamentos para atender aos guerreiros inimigos feridos em combate; até à assinatura de armistício com o comandante lusitano, estabelecendo a paz até fins de dezembro de 1615. Lamentavelmente o dito acordo foi descumprido por Alexandre de Moura, que comandando uma grande esquadra aniquilou de vez os gauleses, estabelecendo uma rendição pouco digna ao ilustre La Ravardière.

Apesar de, em casos semelhantes, a história relatar os acontecimentos quase sempre do ponto de vista do vencedor, este caso maranhense confirma que toda regra tem suas exceções. Aqui, constatamos que a verdade dos fatos sobrepujou a fantasia.

Se em minhas buscas nada consegui descobrir que atribua aos portugueses a fundação da cidade, arrisco concluir que o mesmo deve ter ocorrido com os contestadores, já que seus argumentos nada de concreto oferecem além de meras conjecturas.

Um comentário:

  1. Muito bom este artigo. Sou estudante de história, e realmente a literatura historiográfica embasa tais argumentos. Recomendo a você a leitura de uma obra do Sergio Buarque de Holanda, denominada: História Geral da Civilização Brasileira.

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