Claudia Cristina é costureira, maranhense nascida na ilha, caminha as ruas de São Luís há 30 anos, mas, não possui informação alguma sobre o calçamento das ruas históricas de sua terra natal, e sem sabe o nome das pedras que ainda revestem algumas artérias antigas do Centro Histórico da cidade Patrimônio da Humanidade e que ainda sobrevivem ao apetite voraz do asfalto.
No espaço tombado da antiga Upaon-Açú, muitos logradouros públicos desafiam o tempo e a ignorância de alguns desgovernantes, mantendo a duras penas as suas características originais, graças aos esforços de alguns abnegados que sabem da importância da manutenção desse inestimável patrimônio arquitetônico. Quando o transeunte percorre a Rua Direita, Rua dos Craveiros ou Rua das Barrocas, às vezes não sabe que está pisando em solo sagrado, alicerçado pelo suor dos escravos que outrora ergueram com o sacrifício as estruturas destra cidade histórica.
Originalmente, as pedras que ainda são vistas revestindo essas ruas eram chamadas de pedras cabeça de negro, numa alusão racista aos negros escravizados, numa época em que a aristocracia nacional abusava do seu poder sem contestação. Com o tempo, o termo ficou politicamente incorreto, e, nos dias de hoje, são chamadas de pedras pé de moleque. No passado, foram largamente empregadas em praticamente todas as regiões do país que possuem características coloniais, assim como São Luís. Dessa forma, tal calçamento é registrado em locais como o município de São Mateus, no Espírito Santo, em Salvador, na Bahia, e em Alcântara, a localidade maranhense que foi elevada à categoria de monumento nacional, em 1948. Nessa cidade essas pedras são facilmente encontradas na ladeira que vai dar no cais, misturadas às de cantaria, recebendo aí, também, o nome de jacaré, cuja designação batiza tanto a ladeira quanto o porto.
Tais pedras possuem formato irregular e coloração diversificada, que varia do preto ao marrom, passando pelo cinza. São lisas e, quando molhadas pela chuva, bastante escorregadias. Na carona das curiosidades, existe uma cidade brasileira chamada Itapanhoacanga, que significa justamente pedra cabeça de negro, em tupi-guarani.
Pedras, pra que te quero?
É importante assinalar o registro do depoimento do padre José de Morais, que afirmava que em 1759 a maioria das ruas de São Luís já estavam providas de calçamento; ele garantia ainda que o ouvidor-geral João da Cruz Pinheiro Diniz teria sido “quem primeiro promoveu o calcamento que aqui houve”. Cabe lembrar também as palavras dos naturalistas alemães J. B. Von Spix e C. F. P. Martius, que andaram por estas bandas em 1819. Segundo eles, na obra intitulada “Viagem pelo Brasil”, lê-se, a respeito da capital maranhense que “as ruas, desalinhadas e em grande parte aladeiradas, eram calçadas ou sem-calçamento”. Tal observação ganha respaldo pelo fato de que, no governo de Bernardo da Silva Pinto da Fonseca, cognominado de “dente de alho”, na administração que englobou o período de 1819 a 1822, as ruas de São Luís, entulhadas e quase sem trânsito, receberam um relativo calçamento, feito pelos presos, pois havia poucos operários calceteiros disponíveis para o serviço, naquela época.
Apesar desse esforço, conforme assegura Domingos Vieira Filho no seu livro “Breve História das ruas de São Luís”, o calçamento continuou péssimo, feito de pesados matacões e pedregulhos roxo-terra, correndo a parte deles na terra batida que se enlameava mais ainda no inverno com um capinzal intérmino...”. Antônio Lopes, por sua vez, ao se referir à rua Grande, informa que “o caminho era consertado todos os anos, para o que emprestavam os moradores os seus escravos, reunidos em princípios de julho no ponto de onde partiam, atrás da igreja de São João”. O calçamento dessa artéria, no entanto, teve que esperar cerca de 200 anos para ser concluído, mais precisamente no dia 10 de março de 1855, na administração do Dr. Eduardo Olímpio Machado.
Apesar disso, surge em São Luís alguma consciência acerca da necessidade de considerar a rua como elemento de circulação de transporte, com a devida segurança, além de favorecer o contato social. Várias posturas municipais são divulgadas, recebendo as devidas contribuições. Em 1830, o conselheiro Antônio Pedro da Costa Ferreira, que mais tarde receberia o título de Barão de Pindaré, sugeriu uma emenda em que propunha que as novas ruas que fossem criadas a partir daquela época tivessem dez braças de largura, propondo ainda a arborização da cidade. Sem explicação alguma, contudo, a emenda não foi aceita. Com o passar dos anos, a utilização das artérias evoluiu. Surgiram os bondes, que corriam sobre trilhos puxados por juntas de boi. Com o surgimento da energia elétrica, o transporte ficou mais ágil e o calçamento mais resistente para suportar o aumento da pressão dos transportes sobre o solo.
As garras da destruição
Na década de 60 do século passado, uma decisão equivocada de um prefeito de São Luís baniu os bondes da paisagem, e outro gesto de insanidade trouxe o negrume do asfalto, que veio sufocar a beleza de grande parte do antigo calçamento do Centro Histórico de São Luís. Apesar dos tombamentos, vários crimes contra o patrimônio continuam sendo praticados. Há nove anos, asfaltaram a Rua do Machado, e quase afogaram com a mesma idiotice o Beco da Baronesa. Alguns moradores da rua, conscientes da necessidade da preservação, evitaram o desastre. Com o passar do tempo, paralelepípedos vieram se incorporar à paisagem do calçamento, às vezes se misturando às pedras pé de moleque e, em outras ruas, constituindo o seu calçamento como um todo.
Há alguns anos, um novo perigo ameaça profanar a antiga harmonia urbanística de São Luís, que ainda sobrevive à investida dos bárbaros. Há sete anos atrás, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos – SEMSUR começou a tapar buracos eventuais surgidos nas ruas com calçamento à base de pedras pé de moleque com blocos refratários utilizados pela fábrica da Alumar. Após o descarte dos blocos, como lixo, os mesmos começaram a ser utilizados como remendo no calçamento de São Luís, numa prática totalmente equivocada, um acinte à estética dessas artérias de feição colonial. Esses blocos, que possuem 40 cm de comprimento, são doados pela empresa citada.
Não há estudo algum acerca da possibilidade de serem tóxicos, de tal forma que foram utilizados de forma indiscriminada pela construção civil. Várias ruas do Calhau já foram calçadas com tais blocos cerâmicos, como atesta o depoimento da arquiteta Karina Bontempo, que acrescenta que “essa empresa os doa conforme solicitação da comunidade; sei que esses tijolos são usados no calçamento do parque ambiental da Alumar, mas, não posso afirmar que os mesmos são tóxicos”. No Centro Histórico, vários remendos com esse material podem ser vistos nas ruas da Mangueira, Barrocas, Craveiros ou na rua Grande, dentre tantas outras artérias tombadas. A utilização desses blocos refratários em ruas com calçamentos antigos no Centro Histórico de São Luís é um verdadeiro insulto à memória da cidade; agride o conjunto urbanístico, tanto sob o aspecto estético quanto cultural, sendo necessária, em razão disso, uma ação reparadora por parte das instituições responsáveis pela preservação do patrimônio histórico da capital maranhense.
Por Paulo Melo Sousa
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